Segurança alimentar, inovação e engajamento social encerram ciclo de palestras sobre saúde única
“A segurança de alimentos é responsabilidade de todos: de quem produz, de quem consome, de quem fiscaliza, de quem monitora, de quem avalia, de todos comprometidos com a inocuidade da alimentação”, disse a médica-veterinária brasileira Simone Raszl, coordenadora do programa de alimentos do Centro Panamericano de Febre Aftosa (Panaftosa) da Organização Panamericana da Saúde (OPAS/OMS), na abertura do módulo da tarde do III Simpósio Paranaense de Saúde Única.
No penúltimo módulo do simpósio sobre segurança de alimentos e sustentabilidade, Simone abordou os impactos econômicos da falta de segurança de alimentos, como interferem na produtividade, como o estágio de desenvolvimento do país tem relação direta com a incidência de patógenos e zoonoses, o quanto onera as administrações públicas, e quanto causa problemas não mensuráveis, comprometendo a vida e a saúde das pessoas, levando até a morte.
Para chamar atenção de como tratar o problema, a médica-veterinária lembrou a frase do ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), José Graziano da Silva, que dizia: “não há segurança alimentar sem alimentação segura”.
E as medidas preventivas são apontadas como fonte de solução. “Precisamos de mais investimentos, de melhores estruturas regulatórias, mudar para sistemas de inspeção baseados em riscos, formar profissionais especializados na segurança de alimentos, usar novas tecnologias de produção, inclusive com acessibilidade aos pequenos e médios produtores, ter preparo e resposta para situações de crise, melhorar a comunicação com o consumidor e promover a mudança de comportamento”, defende Simone.
Inovação disruptiva
Administrador e diretor do The Good Food Institute, Gustavo Guadagnini falou sobre produtos sustentáveis e novas alternativas na produção de alimentos. Mais especificamente sobre as novas tecnologias e como elas vem transformando a indústria de alimentos para enfrentar os desafios que temos a frente para alimentar quase 10 bilhões de pessoas; melhorar a saúde humana em relação às doenças associadas a alimentação, como diabetes, câncer, contaminações, além das superbactérias pela resistência antimicrobiana; parar o sofrimento desnecessários dos animais e conter os impactos ambientais.
“Comida é a nova internet”. Essa frase é de Kimbal Musk e Gustavo parafraseou o empreendedor sul-africano para acentuar como a área alimentar está aberta a inovação, e tornou-se um segmento para onde o capital está se movendo. “Grandes empresas estão investindo pesado em novas tecnologias, em inovações disruptivas, como, por exemplo, carnes vegetais e carnes cultivadas, aquelas criadas a partir de células de animais, produzidas sem precisar abater um animal, de forma mais ética, sustentável e agredindo menos o meio ambiente”, garante.
Em termos de consumo, a expectativa, segundo Guadagnini, é que em 10 anos esses produtos estejam disponíveis no mercado a preços competitivos. “Parece muito, mas pensando na disrupção tecnológica da indústria alimentícia não é, pois hoje 30% dos consumidores já se interessam pelo mercado de produtos vegetarianos e 60% dizem ter diminuído o consumo de carne vermelha por conta de questões de saúde”, revela.
De acordo com o pesquisador, até 2035 o mercado de carnes vegetais vai movimentar entre 100 e 370 milhões de dólares. “Não é possível apostar em uma única tecnologia para o Brasil continuar sendo uma grande potência agropecuária, precisamos caminhar com ciência e pesquisa, associando soluções inovadoras e sustentáveis para a produção de alimentos”, enfatizou.
Forças Armadas
Atualmente, as Forças Armadas brasileira contam com 345 mil militares espalhados pelo país e a coronel veterinária Beatriz Helena Ferreira é responsável pela atuação do Ministério da Defesa na garantia de alimentos seguros para todo esse efetivo. São quase 700 cozinhas fixas nas organizações militares, fora as móveis montadas em acampamentos.
O trabalho dela envolve desde a captação dos alimentos, até o transporte, a armazenagem, a manipulação, a cocção, e a distribuição em ambientes operacionais diversos, como selva, cerrado, sertão nordestino, e para grupamentos específicos que necessitam de alimentação adequada para a função que exercem, como paraquedistas e equipes de busca e salvamento.
Como garantir a segurança dos alimentos para essa diversidade de situações? Para isso a coronel explica que existe uma comissão mista para estudar os problemas relacionados com a alimentação e estabelecer boas práticas de defesa alimentar para as Forças Armadas, inclusive das rações e gêneros alimentícios para equipes de campo.
“Somos militares, respeitamos hierarquia, missão dada é missão cumprida, mas também já entendemos que não basta dar ordem, é preciso conquistar corações e mentes”, disse a coronel para enfatizar que estão investindo em cultura e boas práticas de segurança na formação dos manipuladores de alimentos.
Por entender que podem ser alvo de terrorismo alimentar, a coronel também lidera um projeto de defesa alimentar, que aborda tudo que precisa ser feito para evitar a contaminação intencional, ao contrário da segurança de alimentos, que cuida da contaminação acidental.
“São ações educativas para prevenir, reduzir ou eliminar riscos que possam, de forma intencional, comprometer a sanidade das tropas com o terrorismo alimentar, e também ações de monitoramento para evitar o colapso da cadeia de abastecimento”, explica.
Transtornos psíquicos
O módulo de encerramento do III Simpósio Paranaense de Saúde Única trouxe temas relacionados à interação humana e animal do ponto de vista social, mostrando seu impacto e fechando o ciclo da saúde única.
A psicóloga Carla Regina Françoia abordou em sua palestra os males da atualidade: depressão, ansiedade e síndrome do pânico. A especialista destacou a importante mudança recente na conceituação destes fenômenos, antes considerados doenças e hoje entendidos como transtornos psíquicos transitórios, porque “isso não nos define ou caracteriza mais, é temporário. Antigamente as pessoas eram internadas em clínicas psiquiátricas por anos por causa de depressão”.
Para ela, no entanto, as pessoas não se permitem mais sofrer e, ao mínimo sinal, recorrem ao medicamento como solução. “Muitas vezes é necessário que o sofrimento exista para que possamos aprender a lidar com determinadas situações”, afirma. Françoia acredita que o fato de nos cobrarmos e sermos cobrados por outros a sermos gratos por nossas conquistas – trabalho, família, saúde – nos faz acreditar que não podemos nos entristecer. Por isso “é preciso que paremos para olhar para esses fenômenos e entender o que o nosso corpo e nossa condição está dizendo sobre isso”.
Como exemplo, citou a própria experiência ao levar seu cachorro para a sala de aula. “Estava chovendo e não queria deixar meu cachorro em casa, acabei trazendo para a aula. Sem pensar muito”, lembra. Os acadêmicos mudaram de uma hora para a outra: as aulas que eram marcadas por crises de ansiedade ao carregar um tema pesado, passaram a ser mais leves pela simples presença do animal. “No fim, as outras turmas perguntavam porque eu levava em uma sala e na outra não. Acabou se tornando rotina”, relata.
Vulnerabilidade social
Em suas pesquisas, Alexander Biondo procurou descobrir a relação entre as vulnerabilidades sociais e a interação humano-animal. Embora a Medicina Veterinária seja uma ciência antiga, sempre foi considerada como agrária, sendo sua vertente na área da saúde ainda recente. “As escolas de veterinária no mundo se localizam em cidades longes dos grandes centros, diferentemente das escolas de medicina, por exemplo, que priorizam o fluxo de atendimento dos grandes centros”, ressalta.
A incorporação dos animais à vida familiar é um dos motivos para essas mudanças. Mas esta aproximação também levantou algumas dúvidas, principalmente em relação à transmissão de zoonoses. Para entender melhor este fluxo, Biondo realizou alguns estudos: em Londrina, interior do Paraná, constatou que os cães não são sentinelas da toxoplasmose. Foram analisadas 564 residências com 597 tutores e 729 cães, nas quais foi identificada sorologia de toxoplasmose em 41% dos humanos e apenas 16% dos cães.
No monitoramento de cães comunitários de terminais de ônibus em Curitiba, encontrou baixa prevalência de doenças. No caso dos animais de moradores de rua a situação não é diferente: “encontrei zero. Os animais dos moradores de rua não transmitem doenças, pelo contrário, eles ajudam na socialização do morador”.
Biondo destacou ainda que o contato próximo do animal com a família aumenta o índice de hábitos similares para ambos, como alimentação, ambiente, o que “mostra que humanos e pets compartilham dos mesmos riscos de adquirir doenças”.
Intervenções assistidas por animais
A presença ilustre da Cacau, uma cachorra que atua como terapeuta animal, transformou a palestra de Rafael Wisneski em aula prática. Treinador de cães há 15 anos, Wisneski é quem vem acompanhando o desenvolvimento da labradora no último ano para que ela possa atuar como facilitadora em tratamentos odontológicos e terapêuticos na PUCPR.
“O convívio com animais diminui estresse, colesterol, frequência cardíaca e pressão arterial”, afirma. Pela alegria dos presentes ao fazer um carinho rápido que fosse na Cacau, pode-se dizer que é verdade. ZOOEYIA, este é o conceito que ele diz resumir toda essa transformação que os cães fazem. “São os benefícios positivos para a saúde humana ao interagir com os animais. É o oposto de zoonoses e se apresenta como componente essencial da saúde única”, destaca.
Os cães que atuam nestas atividades têm a capacidade de, com treino profissional, melhorar a autonomia, autossuficiência e independência de pessoas com dificuldades sensoriais, motoras, mentais e orgânicas.
Entre as intervenções assistidas possíveis há as terapias, nas quais o animal, por exemplo, auxilia o paciente a andar, falar e socializar; na educação assistida, o cão é utilizado como recurso pedagógico para facilitar o processo de aprendizagem. “A biblioteca pública do Paraná foi a primeira biblioteca pública do Brasil a receber educação assistida por animais”, lembra. Wisneski também oferece seu conhecimento para colaborar com o Instituto Cão Companheiro, no qual treina cães para ajuda social.
Saúde Única na prática
Na última palestra do dia, a farmacêutica e bioquímica Laryssa Rauh Zawadzki não apresentou dados, gráficos, estudos nem projetos. Mas apresentou a todos a aplicação prática do conceito multidisciplinar e multissetorial da saúde única para a sociedade: compartilhou sua experiência na Organização Não-Governamental (ONG) Médicos de Rua, que promove atendimento integral e humanizado aos moradores de rua.
Em atividade em Curitiba desde 2018, o projeto cresce exponencialmente na capital. Já são mais de 800 voluntários das mais diversas áreas de atuação, em especial da saúde: fisioterapeutas, médicos, farmacêuticos, nutricionistas, enfermeiros, biomédicos, odontologistas, psicólogos.
A lista não tem fim. Entre eles, claro, médicos-veterinários que realizam o acompanhamento e atendimento dos animais dos moradores. Enquanto os tutores passam por anamnese, exame físico, exames laboratoriais e mais uma série de processos, os animais também recebem atenção. “O cuidado dos moradores com os animais é muito maior que com eles próprios. Antes de receberem o próprio tratamento, garantem que o animal receba ração, vermífugo e antipulga”, finaliza.
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Assessoria de Comunicação do CFMV