Entrevista sobre síndrome de burnout e fadiga por compaixão – Revista CFMV nº80
Dados do Sistema Único de Saúde (SUS) indicam que o médico-veterinário é o profissional com maior risco de suicídio no Brasil, na proporção de dez atos cometidos para um realizado pelo restante da população. Por trás desses números assustadores, podem estar a síndrome de burnout (sensação de esgotamento crônico por sobrecarga de trabalho) e a fadiga por compaixão, que gera sintomas de estresse pós-traumático em cuidadores. Essa é a avaliação do médico-veterinário intensivista Rodrigo Cardoso Rabelo, gerente do Departamento de Pacientes Graves do Intensivet Núcleo de Medicina Veterinária Avançada (DF). Também consultor em medicina intensiva e gestão hospitalar Lean health care, ele monitora preventivamente suas equipes e alerta os empregadores. “Esse cuidado é importante, porque dificilmente a pessoa percebe que está em burnout”.
Publicado há cerca de dois anos, o Estudo de Bem-Estar Veterinário (Merck Animal Health Veterinary Wellbeing Study), conduzido pelo laboratório MSD, em parceria com a American Veterinary Medical Association (AVMA), mostrou que 30% dos profissionais tiveram episódios de depressão após concluir o curso e, em 17%, houve tendências suicidas. O que os torna vulneráveis?
No estudo americano, a sobrecarga de trabalho (overload) revelou-se a causa mais importante para a doença, bem como a necessidade de lidar com funcionários e clientes sob alto nível de estresse, a vivência com os erros médicos e o luto. Já em dois estudos que realizamos pela Intensivet – um em parceria com a Universidade de Santo Thomaz, em Concepción (Chile), e outro, ainda inédito, feito no Brasil –, a falta de reconhecimento é algo importante na América Latina, associada a ter que lidar com o luto contínuo, carga de trabalho exagerada e remuneração mal ajustada ao nível de conhecimento exigido.
Outra pesquisa, inglesa, indica que a taxa de suicídio de médicos-veterinários é quatro vezes maior do que na população em geral. Como é no Brasil?
É parecido. Os últimos dados do Datasus (Sistema de Informação de Mortalidade/Datasus/Ministério da Saúde) são de 1980 a 2007 e indicam que a taxa de suicídios de médicos-veterinários é de 10,6 vezes para um, frente à população em geral, enquanto a possibilidade de cometerem o ato é 2,25 vezes maior.
O termo “fadiga por compaixão” ainda é pouco conhecido no Brasil. Como ele surgiu e de que modo ela se manifesta? Há estatísticas sobre o tema?
Até 2017, o burnout não constava na Classificação Internacional de Doenças (CID), usada no mundo inteiro. A fadiga por compaixão nem classificada está. Trata-se de uma condição experimentada por cuidadores que estão em sofrimento ou estresse gigante, refletindo a tensão e preocupação com a dor do outro, num nível em que se assume o estresse pós-traumático secundário. Essa síndrome foi descrita dez anos atrás, pelo médico Charles Figley, referente a enfermeiros que tratavam veteranos da Guerra do Iraque. Cuidar do outro sem cuidar de si pode levar a comportamentos autodestrutivos. Fadiga, isolamento, guarda das emoções e abuso de álcool e drogas são alguns sintomas.
As principais causas de deflagração das síndromes laborais nos profissionais do país são: lidar com a morte cinco vezes mais do que outros profissionais da saúde e a falta de definição de objetivos reais na vida pessoal e profissional. Medir o problema é essencial. No Brasil e em vários países, somos a profissão que mais se suicida. É um dado alarmante.
Como diferenciar síndrome de burnout e fadiga por compaixão?
A diferenciação é complicada e não sabemos se daí surgiu uma nova síndrome laboral, na qual o alto nível de cuidado se torna destrutivo, associado à carga pesada de trabalho e à falta de reconhecimento profissional. Ambas se misturam – o burnout está mais relacionado ao esgotamento emocional crônico por sobrecarga de trabalho, enquanto a fadiga, à exaustão emocional de trabalho por outra pessoa.
Para medir a fadiga por compaixão, o questionário de 12 perguntas é o mais clássico, com questões sobre se irritar ou chorar por estresse no trabalho e levar situações profissionais para casa, entre outras. O questionário que se aplica ao burnout, sendo o Maslach o mais conhecido, avalia níveis de esgotamento emocional, realização profissional e despersonalização (grau de distanciamento que o profissional mantém do paciente).
Em brasileiros, há um alto grau de esgotamento emocional associado a um bom nível de realização e baixa despersonalização, indicando um cruzamento entre fadiga da compaixão e burnout – tomamos o paciente como nosso e nos emocionamos, o que são sinais claros de fadiga. É preciso cuidado para não as confundir com depressão, síndrome do pânico e estresse pós-traumático, daí a importância de buscar ajuda de psiquiatra ou psicólogo envolvido com doenças laborais.
Idealizar a profissão pode ser um fator de predisposição a distúrbios psíquicos?
Muitos colegas ingressam no curso porque amam os animais, mas deveriam fazê-lo porque amam as pessoas. Idealizar uma profissão pode ser, sim, um fator de risco. É importante entender que o curso forma um agente de saúde pública, que usa a saúde dos animais como instrumento para salvar vidas humanas, seja cuidando deles, seja evitando zoonoses, mas sabendo que vai lidar com pessoas. A idealização vem da falta de treinamento para a futura realidade, por isso na graduação devia haver disciplinas obrigatórias sobre ética, comunicação de más notícias, lidar com o luto e gestão de recursos humanos.
É possível traçar um perfil do médico-veterinário propenso ao burnout?
É interessante perceber que, no estudo americano, o burnout afeta mais as mulheres de até 50 anos, formadas há mais de uma década, separadas ou solteiras, sem filhos. No Brasil, as vítimas são casadas, tiram poucas férias e não praticam atividade física nem um hobby, enquanto no Chile a prevalência é em solteiros. Tudo isso mostra que é preciso cautela com estudos de correlação, pois nenhum é de causa e efeito, randomizado nem duplo-cego, ou seja, não se propõe a descobrir a causa. Então, é complicado pensar em como reduzir a incidência sem gerar dados estatísticos mais apropriados.
Em que momento a necessidade de buscar ajuda se torna perceptível? Como se cuidar?
Os locais de trabalho devem ter uma área ou pessoa responsável por monitorar o estado mental dos colaboradores. Na clínica, nossa função como gestores é monitorar e mapear, usando questionários. Esse tipo de cuidado é importante, porque é muito difícil a pessoa perceber que está em burnout.
Aos profissionais, uso e recomendo alguns truques. Um: não trabalhar cansado. É difícil, muitos são arrimos de família e assumem vários plantões noturnos, mas não é saudável. Outro ponto é manter a calma durante o atendimento e não priorizar a rapidez, mas o bom uso do tempo para realizar os procedimentos. Conhecer as normas que regem a profissão ajuda numa atuação mais centrada.
O que cada um pode fazer é impor-se limites, delegar funções, ter tempo para descanso, se alimentar e até beber água. Escolha suas batalhas, eduque-se financeiramente e prepare-se para o futuro com a profissão que escolheu. Com persistência, paciência e resiliência, é possível alcançar seus objetivos.
Essas medidas ajudam o profissional a se organizar e realizar uma comunicação de qualidade, gerando compromisso entre a equipe e com os clientes. Também é importante ter um hobby, praticar exercícios físicos ou mentais e seguir uma crença que represente um porto seguro. O fato é: não vamos salvar 100% dos animais nem ficar acordados 24 horas, todo dia.
Médicos-veterinários de determinadas áreas são mais vulneráveis?
Não conheço estudos, mas há uma percepção de que o profissional mais vulnerável é o clínico de animais de companhia ou aspirante a intensivista que lida com internação, pois vive a morte e o baixo reconhecimento como rotina – mais até do que oncologistas, que tratam o animal, mas dificilmente estão no momento de sua morte.
É possível amparar de forma ampla esses profissionais, inclusive por meio de políticas públicas de saúde?
Inserir a fadiga por compaixão na CID, tornando o suporte psicológico e psiquiátrico acessível via plano de saúde ou sistema público de saúde, seria um primeiro passo. Unir forças a profissionais de outras áreas da saúde para melhorar o potencial investigativo dessas doenças, envolver o Ministério da Educação numa mudança curricular e promover melhores condições de estudo e trabalho seriam medidas importantes.
Será inevitável conviver com o excesso de escolas e as graduações a distância. Um caminho, então, é buscar que as instituições insiram na grade curricular o preparo sobre doenças laborais e o mercado de trabalho, por exemplo. Sugiro também que clínicas com plantões de 24 horas e internação tenham algum programa de controle que monitore a condição laboral de quem está no dia a dia dos cuidados intensivos com animais.
A entrevista com o médico-veterinário intensivista Rodrigo Rabelo está na Revista CFMV edição nº 80/2019.