CFMV Entrevista: Médica veterinária Lizie Buss, do Ministério da Agricultura, fala sobre bem-estar animal na produção
Não há dúvidas sobre a importância do agronegócio para a economia brasileira. O setor agropecuário representa 48% das exportações totais do país, sendo o Brasil o maior exportador de carne bovina do mundo. E qual a influência do bem-estar animal no desempenho do setor produtivo?
Em entrevista à assessoria de comunicação do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), a médica veterinária do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Lizie Pereira Buss, fala de boas práticas de manejo, os benefícios que a sociedade e o país ganham ao incentivarem a promoção do bem-estar, além de iniciativas promovidas pelo governo para que isso seja alcançado. Lizie é Chefe de Divisão de Elaboração de Projetos na Coordenação de Boas Práticas e Bem-estar Animal. Confira!
Ascom/CFMV: Quais os principais desafios enfrentados pelo Brasil em relação ao bem-estar de animais de produção?
Lizie Buss: Nós temos três desafios grandes: o primeiro é conseguir investir em pesquisa, já que boa parte das pesquisas sobre o tema de bem-estar animal ainda é feita em outros países, especialmente na Europa. Outro desafio é que o Brasil é um país muito diverso, então para sensibilizar e capacitar as pessoas, é preciso uma grande quantidade de recursos, parcerias, e esse é um trabalho bastante complexo de se fazer. E por último, está o desafio de conseguir que a sociedade não diretamente envolvida no setor produtivo identifique e demande produtos diferenciados.
As pessoas relacionam mais baixo grau de bem-estar, por exemplo, com gado de corte, pois associam isso ao animal que vai para o abate. Mas as aves de postura, os suínos e os bovinos de leite são normalmente os que ficam em ambientes mais restritivos.
Ascom/CFMV: O que são as chamadas boas práticas de manejo e como é possível promover o bem-estar animal na produção?
Lizie Buss: Desejamos fomentar a produção animal, ou seja, gerar carne, leite, ovos e couro com interesse econômico, mas dentro de certas práticas que sejam melhores para os animais e para as pessoas.
Quando falamos em boas práticas, falamos de uma série de procedimentos e processos dentro da propriedade rural, no transporte ou no abate, que minimizem perdas produtivas, sentimentos negativos nos animais, riscos de acidentes de trabalho para os produtores e impactos ambientais.
O bem-estar é um estado inerente do animal. Podemos falar de animais felizes, alegres, sociáveis, sem medo e também de um ambiente onde possam expressar comportamentos naturais inerentes à espécie. Ao não conseguirem desempenhar esses comportamentos, isso gera frustrações, ansiedades, agressões.
Ascom/CFMV: Pode citar alguns exemplos para as diferentes áreas da produção?
Lizie Buss: Buscamos constantemente mecanismos que minimizem a dor, por exemplo na castração e na descorna, que são rotineiros na produção animal. Há informações científicas que dizem que os animais que ficam em confinamento muito restrito, como é o caso de gaiolas, também têm maior estresse. Apesar de estarem produzindo bem, não estão em sua melhor condição de bem-estar. Então também buscamos promover sistemas alternativos de alojamento, como fazemos com a gestação coletiva de matrizes suínas.
Se temos uma boa prática em alojamento, por exemplo, temos animais com menor grau de estresse, menores lesões, mais produtivos e usando menos medicamentos.
Também há o abate humanitário. Queremos que o animal tenha o menor estresse possível, seja abatido sem dor, no menor tempo. Dessa forma a qualidade de carne será melhor e o abate oferecerá menos risco para os trabalhadores, além de menor contaminação dos produtos e um produto mais ético.
Ascom/CFMV: O transporte de animais ainda gera muita preocupação e debate. Existem regras específicas no Brasil em relação a isso?
Lizie Buss: Não existem regras publicadas a nível nacional. O transporte ideal seria aquele que o animal pudesse se deslocar no menor tempo possível, beber água durante o percurso, estar protegido de vento, do calor excessivo e da chuva, além de ter espaço adequado para se levantar e deitar. Sabemos que isso implica em uma série de limitações no custo do transporte – já que quanto mais animais transportados no mesmo veículo, mais barato fica.
Os atuais veículos usados para transporte de bovinos, por exemplo, causam bastante lesão durante as entradas dos animais, por serem muito estreitos. Os animais gostam de andar em duplas e não em fila indiana. Portanto é preciso pensar em desenhos melhores de veículos para usar o comportamento dos animais a nosso favor e facilitar o manejo.
Ascom/CFMV: Qual é o papel do médico veterinário ao se falar em bem-estar animal na produção?
Lizie Buss: O papel do médico veterinário é orientar e estar sempre atualizado. Muitas pessoas falam de bem-estar animal, mas não têm embasamento científico. Como o assunto ainda é novo, muitos confundem bem-estar, por exemplo, com direitos dos animais. Portanto, os médicos veterinários, que prestam assistência técnica, têm que saber orientar os melhores procedimentos para cada situação e ajudar a promover a mudança de consciência na sociedade. É preciso que todos entendam que aquele animal vai produzir alimento e que quanto melhor for cuidado, mais longevo e produtivo será, e melhor será a qualidade do alimento. Além de ter menor demanda por uso de medicamentos, que é algo que encarece e pode gerar resíduos nos alimentos.
Toda vez que o animal entra em medo e pânico, o responsável perde o controle sobre o animal e isso não gera nenhum benefício. O responsável precisa que ele esteja calmo e tranquilo para que seja conduzido, contido, vacinado, alimentado da melhor forma. Muitas pessoas fazem força, gritam, se frustram e se colocam em risco por não conhecerem o comportamento do animal e a melhor forma de conduzi-lo.
Ascom/CFMV: Como se dá a fiscalização do bem-estar do animal pelo médico veterinário nas diferentes fases da produção?
Lizie Buss: A fiscalização ocorre em todas as fases. Ainda temos que fortalecer a fiscalização a nível de granja, mas por exemplo dentro de frigoríficos, que tem a etapa crítica de abate, os veterinários que atuam nos serviços de inspeção já têm isso dentro de suas competências. Precisamos qualificar os demais veterinários para fazer uma boa avaliação de bem-estar, uma vez que agora faz parte das competências da Secretaria de Defesa Agropecuária a fiscalização de bem-estar animal.
Lembro ainda que o serviço de inspeção vai até a produção do alimento, mas não adianta ter todo um cuidado na indústria e no transporte e ao chegar no ponto de distribuição de varejo esse produto ficar mal acondicionado, mal embalado, fora da temperatura, permitindo o crescimento de patógenos que podem prejudicar a saúde.
Ascom/CFMV: O que o Brasil ganha com esse aperfeiçoamento do bem-estar animal para os animais de produção?
Lizie Buss: O país ganha muito, já que temos condições de sermos grandes produtores em sistemas mais extensivos que as pessoas identificam como promotores de bem-estar. É o caso da produção de gados em pastagens e não em confinamento, pois conseguimos manter o gado ao ar livre durante todo o ano em todas as regiões do Brasil e isso é uma grande vantagem comparada a outros países que muitas vezes têm que fechar os animais em galpões por conta do clima. Isso gera uma série de problemas de qualidade de ar, competição por alimento, temperatura.
Entendo que no momento em que fomentarmos a sustentabilidade na produção, vamos nos consolidar internacionalmente e ao invés de produzir comoditty estaremos produzindo um produto diferenciado, de alto valor agregado, que vai alcançar os melhores mercados. Isso gera divisa para o país, remuneração para o produtor, capitalização das indústrias e desenvolvimento humano de forma geral.
Ascom/CFMV: Existem normas específicas, nacionais ou mundiais, que o Brasil segue em relação ao bem-estar de animais de produção?
Lizie Buss: Ainda somos carentes de legislação sobre esse tema no Brasil. Temos a Instrução Normativa nº 56 do Mapa, que tem diretrizes gerais para sistemas produtivos, e fala sobre o bem-estar dos animais desde o momento do nascimento até o abate humanitário. Seguimos ainda as recomendações da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), que usamos como referência em nossos projetos, capacitações e materiais. O Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (Riispoa) também é respaldo para nossas ações, pois fala de qualidade de produto e boas práticas de manejo.
Ascom/CFMV: Nas universidades, como acredita que o bem-estar animal deveria estar inserido nos currículos da Medicina Veterinária e Zootecnia?
Lizie Buss: As boas práticas deveriam estar em todos os currículos das faculdades. E todos os professores deveriam estar alinhados, pois não adianta ter uma disciplina de bem-estar animal, se na disciplina de criação e produção de uma espécie, por exemplo, o professor não oferece as melhores formas possíveis de manejo. As disciplinas deveriam, portanto, estar alinhadas dentro desses conceitos de boas práticas, pensando não só na produtividade, mas na qualidade final do produto, na sustentabilidade do negócio e no menor risco ao produtor rural.
Ascom/CFMV: Tem sido trabalhado na área da saúde o conceito de bem-estar único. Como o bem-estar animal está relacionado ao bem-estar humano e ao meio ambiente?
Lizie Buss: Há muitos trabalhos que relacionam sistemas em que as pessoas estão mais felizes e positivas com animais que são mais produtivos e usam menos medicamento. Não adianta investir em um galpão lindo e maravilhoso se o funcionário está em uma situação precária de conforto, sem equipamento de proteção e sobrecarregado. Dessa forma ele não vai tratar os animais como merecem e vai se colocar em risco. Quando trabalhamos com bem-estar animal estamos buscando também o bem-estar humano. E ao aprender a respeitar os animais, eles vão aprender a respeitar a si mesmos e ao meio ambiente.
Ascom/CFMV: Quais são as principais iniciativas do Mapa para a promoção do bem-estar animal?
Lizie Buss: Há oito anos o Mapa instituiu uma comissão técnica permanente para trabalhar com bem-estar animal, já que o Brasil é um país grande e era necessário alcançar mais colegas que estavam nos estados. O trabalho envolve elaborar materiais que sirvam para capacitação.
A maior parte dos nossos parceiros são instituições federais, como a Embrapa e algumas universidades, e também temos projetos em andamento com associações de produtores. Além disso, temos parceiros internacionais, como é o caso da União Europeia. Já realizamos vários treinamentos com esse cunho de troca de experiências e de informações técnicas.
Também temos um projeto grande de abate humanitário em parceria com a World Animal Protection, que já capacitou 11 mil pessoas.
Realizamos ainda treinamentos conforme demanda, sendo a maior parte em suínos, aves, equinos e bovinos. Atualmente temos um projeto em ovinos e queremos formalizar um projeto em peixes.
Confira aqui a página da campanha de bem-estar animal do CFMV.
CFMV (matéria acessada em 19/05/17)