Equilíbrio da saúde única é o melhor caminho para evitar novas pandemias
O último módulo dos simpósios trouxe para o debate o tema Pandemias: ontem, hoje e amanhã. A presidente da Comissão de Saúde Única do CRMV-PR e organizadora do evento, Cláudia Pimpão, foi a responsável por introduzir o assunto aos participantes.
“Quando decidimos essa abordagem, estavam aparecendo os primeiros casos de covid-19 no Brasil e ainda existiam muitas dúvidas das pessoas da área de saúde sobre a doença. As pandemias trazem alguns dos episódios mais dramáticos da história, ceifaram muitas vidas sem que as vítimas soubessem ao menos a causa. Matavam mais do que a guerra. É um inimigo desconhecido”, disse a mediadora.
Como estamos? Para onde vamos? O que esperar pós-pandemias? Será que temos essas respostas? Os questionamentos levantados por Pimpão deram o pontapé inicial para a tarde de palestras.
História das Pandemias
“A humanidade tem o conhecimento, mas esquece da natureza. O homem esqueceu que faz parte de um todo e não é um elemento que domina e manipula. Há a indissociabilidade da saúde humana, ambiental e animal”, afirmou a presidente da Comissão Estadual de Animais Selvagens do CRMV-PR, Valéria Natascha Teixeira, durante a palestra História das Pandemias.
A professora apresentou uma linha do tempo de pandemias ocorridas ao longo da história, mostrando que o momento atual, vivido em razão da SARSCoV 2 (covid-19), não é novidade. Isolamento, máscaras como parte do cotidiano, mortes em todo o mundo e preocupação com o futuro são momentos já vividos por gerações passadas.
“Estamos convivendo com uma pandemia e nos tornamos um pouco especialistas no tema. Não só porque fazemos parte disso, mas para buscarmos informações. É interessante saber o que aconteceu no passado para entendermos o presente”, explicou.
Para Teixeira, não é possível separar o homem, o meio ambiente e a fauna. Os elementos da saúde única estão relacionados e interligados e fazem parte do entendimento de qualquer pandemia. “A mortalidade que vemos hoje não é apenas por questões de saúde, mas principalmente por questões sociais e ambientais. O meio ambiente e o comportamento humano fazem parte de fatores da pandemia”, analisa. “Registros que trazem perdas humanas estão relacionados a três coisas que precisamos entender: os meios ambientes, a fauna e o ser humano. Eles estão relacionados a muitas pandemias, como pestes, febre amarela, ebola, HIV”, conclui.
Outro fator importante apontado durante a palestra para a causa de pandemias é a habilidade que o ser humano tem de se dispersar. “Eles aumentam a sua amplitude geográfica pelo comércio, guerra, viagens, colonização, transportes. A habilidade que temos de estar em vários lugares permite a disseminação maior de agentes”, explica a professora.
Do outro lado da moeda, há também, ao longo da história, os efeitos positivos de eventos que marcaram a humanidade pelas dificuldades, como é o caso das pandemias. “Bicicletas foram inventadas a partir da erupção de um vulcão. No século XIX, com a revolução industrial, as pessoas saíram do campo e foram viver nas cidades. Elas não sabiam conviver em pequenos espaços e as questões de higiene acabaram trazendo vários problemas. E surgiu também a revolução bacteriana. O sanitarismo começa a ser implantado, que é a base para o palco do estudo da resistência aos antimicrobianos”, finaliza.
Outros efeitos positivos citados durante a palestra são evolução científica e cultural; vacinas; solidariedade, cooperação e voluntariado; migração para o meio digital; mediação tecnológica digitalizada; entre outros.
Iniciativa global pretende reunir informações para melhorar produtividade e acesso a alimentos de origem animal
Em sua apresentação no módulo sobre zoonoses, na tarde de quarta-feira (4), Jaime Ricardo Romero Prada alertou que a desnutrição crônica só será combatida com o consumo de proteína animal. “O Brasil tem uma posição interessante, pois tem 50% das escolas de Medicina Veterinária do mundo, um serviço sanitário bem estruturado e é um importante exportador”, afirmou o médico-veterinário, que é especializado em sanidade agropecuária e inocuidade dos alimentos no Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA).
Prada representa sua instituição no Global Burden of Animal Diseases (GBADS), iniciativa multinacional que reúne membros de universidades e organizações de todo o mundo que coleta informações sobre o impacto econômico das doenças dos animais, a fim de orientar ações voltadas à sua saúde e bem-estar. Sua palestra no simpósio, intitulada Os Impactos Econômicos e Sociais das Zoonoses, abordou a atuação desse projeto, existente há dois anos e com duração prevista de mais cinco.
Ele listou os principais desafios do setor pecuário, atualmente e para o futuro: maior demanda por comida, em particular, proteína animal; pressão crescente sobre o uso da terra, água e ar; aumento da conectividade e movimentação do setor pecuário; maior conscientização sobre o impacto da atividade no meio ambiente e na saúde pública; consciência limitada da importância e do valor dos animais na sociedade; e pressão nos orçamentos públicos e privados para apoiar a indústria e gerenciar a saúde e o bem-estar animal. O GBADS cria métricas visando superar esses desafios e dar suporte à tomada eficiente de decisão, seja de governos, produtores ou instituições.
“Esse desequilíbrio nos trouxe, a partir do final do século XX, uma série de emergências sanitárias, algumas como a encefalopatia espongiforme bovina, que mudou as práticas de produção e também a atenção dos humanos sobre o consumo dos alimentos”, afirmou, citando também as doenças causadas pelos vírus SARS-CoV-1 (síndrome respiratória aguda severa), H5N1 (influenza A ou gripe aviária) e Zika, além da covid-19, provocada pelo SARS-Cov-2 e outras que virão. “Não é uma questão de ‘se’, mas quando”, vaticinou o pesquisador.
Para enfrentar os desafios
– Desenvolver mensagens claras e concretas sobre o papel dos animais e a importância de gerenciar a saúde e o bem-estar animal.
– Mostrar como a atividade principal do sistema de saúde animal atinge as metas econômicas, sociais, de segurança alimentar e ambientais.
– Atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Conquistar essas metas, diz Prada, passa por sermos mais ágeis com a geração de dados e de informações confiáveis, inclusive sobre os encargos sociais, econômicos e ambientais das doenças animais. E como tomamos essa decisão?
“Mais de 80% das decisões dos seres humanos é tomada de forma intuitiva. Em situações complexas e com escassez de recursos, temos que providenciar informações para tomarmos melhores decisões”, assinalou Prada. Para mostrar a relevância dos animais, ele usou dados como o de que há 190 kg de animais para cada ser humano no planeta, mas assinalou também o papel desses seres como banco de riqueza, fonte de felicidade e companhia, na produção de alimentos e roupas, no fornecimento de transporte, enfim, em vários aspectos da sociedade.
Paralelamente, há bilhões de pessoas desnutridas e produtores sem acesso aos serviços de saúde e tecnologia. “Estamos em um paradoxo. Produtores de gado e consumidores precisam de investimento que garanta serviços veterinários adequados, recursos que solucionem problemas de saúde, bem-estar e produtividade e avaliação dos investimentos em saúde animal, de forma a garantir que cumpram resultados sociais”, pontuou o médico-veterinário.
Prada explica que o GBADS atua justamente na melhora do potencial de produção, de modo a melhorar a vida do pecuarista e aumentar a oferta de alimentos, com base em planos e avaliação de investimento para sistemas de saúde animal, além de alocação de recursos para problemas-chave. “Queremos um sistema que tenha uma visão mais holística do impacto econômico das doenças dos animais”, afirmou.
O estudo do impacto das enfermidades considera todos os públicos. “Algumas doenças custam mais para ser controladas do que as possíveis perdas que gerariam, é esse equilíbrio que buscamos, de forma a gerar mais valor aos animais”, comenta.
O final da apresentação foi dedicado aos objetivos da atuação do GBADS e a como estão trabalhando, por meio de grupos e temas. Na fase inicial do projeto, foram realizados pelo GBADS estudos de caso na África e na Ásia, que vão gerar análises de risco para o desenvolvimento de sistemas de informação sanitária mundial, sempre tendo como base informações disponíveis. O IICA lidera o trabalho do GBADS nas Américas, em coordenação com a Organização Mundial da Saúde (OIE) e em comunicação direta com a Universidade de Liverpool, na Inglaterra, onde o projeto está sediado.
“Esperamos, ao final, entregar um esquema que nos permita conhecer e dimensionar o impacto das enfermidades animais em saúde pública e entender os impactos específicos nos países, seus sistemas de alimentação, as perdas por doenças que afetam humanos, grupos e regiões específicas, a distribuição entre espécies, os investimentos e como distribuir essa riqueza com equidade”, descreveu, em resumo, o legado desejado do projeto.
Informação é a melhor ferramenta para médicos-veterinários entenderem impactos da covid-19 em animais
Embora o tema da palestra fosse a relação entre a covid-19 e os animais domésticos, o médico-veterinário Hélio Autran, professor da Oregon State University, nos Estados Unidos, discorreu por mais de uma hora de forma detalhada como o SARS-CoV-2 afeta diferentes espécies, inclusive silvestres e selvagens. Para o médico-veterinário gaúcho, que atua há quase 20 anos na América do Norte, seus pares precisam entender que esconder informação não é a melhor solução.
“Nosso papel é ser educador, não adianta negar a ciência. Se existe risco, temos que identificar e estabelecer as medidas necessárias para prever esse risco”, pontuou, mais de uma vez ao longo de sua apresentação, ao se referir a estudos que identificaram infecção pelo novo coronavírus em cães e gatos, causando alarme entre profissionais, tutores e gerando temor pelo abandono dos animais.
Autran apresentou tabelas relacionando a sensibilidade à infecção pelo SARS-CoV-2 em diferentes espécies, considerando situações de contaminação natural e experimental levantadas por estudos realizados em vários países. A forma como primatas, suínos, bovinos, roedores, carnívoros e felídeos reagem ao novo coronavírus e se desenvolvem sintomas associados à covid-19 foi esmiuçada pelo médico-veterinário. Ele destacou que tais informações são fundamentais inclusive para analisar riscos de saúde pública.
“Um dos requisitos fundamentais de sensibilidade é que o animal tenha o receptor ACE-2, o mesmo que os humanos. Mas isso não é ‘destino’, vide o caso dos suínos, que não têm seroconversão [termo de imunologia relacionado ao intervalo de tempo em que um anticorpo específico se desenvolve como resposta a um antígeno e se torna detectável no soro]”, comentou.
A maioria das espécies pesquisadas desenvolve anticorpos e realiza excreção viral, contagiando seus pares. No entanto, das que mantêm mais contato com os humanos, não foi identificada a transmissão a infecção entre bovinos e suínos, por exemplo. Cães e gatos, por sua vez, têm sido bastante estudados, pois são as espécies domésticas mais comuns no mundo como animais de companhia. Neles, há vários relatos comprovados de infecção por vias naturais e, enquanto cachorros tem pouca sensibilidade ao vírus, Autran citou a morte comprovada de um gato por covid-19.
“O grande medo é que a covid-19 se transforme numa antropozoonose e uma espécie vire reservatório, mesmo que a infecção em humanos esteja controlada. Temos que nos preparar para essa possibilidade, que é improvável, mas não impossível. Ausência de evidência não é evidência de ausência”, disse.
Visons, criados em fazendas em países como Holanda e Dinamarca para a produção de peles, mostraram-se extremamente suscetíveis ao SARS-CoV-2, tendo sido contaminados por humanos, entre si e, segundo o médico-veterinário, com dois casos de transmissão desses animais a humanos já comprovados. Muitas fazendas estão dizimando suas criações por conta disso. Outra questão a ser colocada é a possibilidade de contágio em espécies marinhas que circulam em locais onde há despejo de esgoto, onde já se achou o RNA do SARS-CoV-2. “Mas tudo se baseia em homologia, não sabemos se são ou não infectados”, comenta.
Autran reforça o alerta de que, apesar de furões e gatos domésticos serem muito suscetíveis à infecção, até hoje só foi identificado contágio desses animais por meio de humanos doentes, de quem receberam a carga viral. Não há comprovação de que retransmitam o vírus aos humanos. E ressalta: “Mesmo que acabassem todos os cachorros e gatos mundo, não vai mudar a quantidade de casos de covid-19 que existem. Não precisamos desses animais para que a pandemia ocorresse”.
Para ele, os números mostram que não há motivo para pânico, muito menos para o abandono de animais, o que na verdade só piora a situação. “Em cães, a excreção é baixa, temporária, há 15% probabilidade de terem anticorpos. A expressão viral neles é curta, não infectam outros animais e não há caso documentado de infectar pessoas, e será muito difícil provar isso. Pessoas pegam covid de pessoas”, assinalou.
Tanto em cães quanto em gatos, ele destacou a importância de médicos-veterinários clínicos tomarem medidas de precaução nos cuidados com animais que vieram de casas com pessoas contaminadas, principalmente em procedimentos que geram aerossol. Uma espécie silvestre sobre a qual se fez descobertas recentes foi o camundongo-veadeiro, que se revelou altamente suscetível, excretor de vírus e pode viver perto de residências.
Durante a fase de perguntas dos participantes, Autran pontuou mais uma vez a importância da informação para a precaução. “Prefiro aprender e acho que todo dado é importante. Houve uma fase negacionista, quando saiu o primeiro trabalho sobre gatos, na China. Tenho contato com profissionais de várias partes do mundo, alguns acharam ótimo ter informação, outros disseram que ‘nem se devia publicar’. Se tiver que tratar um animal com covid, nada vai mudar do ponto de vista médico e de protocolo. Animais são importantes, temos que saber os riscos em termos de saúde de rebanho. É preciso ter resiliência, nos adaptar e seguir em frente”.
CFMV