28 de setembro – Dia Mundial de Combate à Raiva
Para lembrar a importância de controle e prevenção do vírus da raiva, a Aliança Global para o Controle da Raiva (ARC), com o apoio da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), comemoram, em 28 de setembro, o Dia Mundial de Combate à Raiva.
Por ano, mais de 40 mil pessoas morrem em todo o mundo em decorrência do vírus. Desde 2004, ele está sob controle, no Brasil. Até então, era um grave problema, principalmente devido à raiva urbana, transmitida por cães e gatos. Mas ainda existem outros animais transmissores da doença, como os morcegos, hematófagos ou não. A doença transmitida por esses animais em ambiente urbano vem sendo identificada com frequência cada vez maior.
O médico-veterinário tem papel fundamental na luta contra a raiva. Ele atua nos sistemas de saúde e fica responsável por prevenção, controle, diagnóstico clínico e laboratorial da doença. Ele avalia fatores de risco quanto à transmissão do vírus no ambiente e em animais, visando alertar os órgãos de saúde e prevenir a ocorrência da zoonose.
A Comissão Nacional de Saúde Pública (CNSPV/CFMV) produziu uma nota técnica sobre a doença. O texto faz um diagnóstico da gestão atual da doença, além de sua prevenção e controle:
NOTA TÉCNICA DA CNSPV/CFMV SOBRE O VÍRUS DA RAIVA
Cenários atuais
A raiva é uma doença infecciosa viral aguda, que acomete mamíferos, inclusive seres humanos, e é causada por uma infecção envolvendo o vírus da Raiva, gênero Lyssavirus, da família Rhabdoviridae, sendo caracterizada clinicamente como uma encefalite progressiva e aguda com letalidade de aproximadamente 100%. Mais de 40 mil pessoas em todo o mundo morrem de raiva a cada ano.
A presença do vírus em morcegos, hematófagos ou não, encontrados no ambiente urbano, vem sendo identificada com frequência cada vez maior. A raiva transmitida por morcegos a seres humanos na América Latina e os fatores associados à ocorrência de focos já foram detalhados por Schneider e colaboradores (2009). O número de casos fatais diagnosticados em humanos, a partir da transmissão por morcegos hematófagos, se apresenta em elevação, em detrimento dos casos transmitidos por canídeos.
– No Brasil
Humanos e animais
O Programa Nacional de Profilaxia da Raiva foi institucionalizado no país, no ano de 1973, mediante convênios entre o Ministério da Saúde, envolvendo a Fundação dos Serviços de Saúde Pública (FSESP), Central de Medicamentos (Ceme), Organização Panamericana de Saúde (Opas) e o Ministério da Agricultura.
O programa listava seis atividades estratégicas o controle da raiva urbana e a eliminação de casos em humanos.
• Atendimento das pessoas expostas ao risco de acometimento da doença;
• Vacinação de cães e gatos;
• Diagnóstico laboratorial;
• Vigilância Epidemiológica;
• Recolhimento de animais;
• Educação em Saúde.
Após 30 anos de implantação, o Brasil alcançou significativos resultados no controle da raiva urbana. A partir de 2004, casos de raiva em cães e gatos tiveram uma significativa redução, sendo eliminados em praticamente todos os centros urbanos do país e, consequentemente, a não ocorrência de casos humanos por transmissão dessas espécies. Atualmente, são raros os casos registrados e, quando ocorrem, se localizam em áreas muito específicas do Brasil.
Em contrapartida aos cenários epidemiológicos anteriores, a raiva silvestre, sobretudo aquelas relacionadas à transmissão por quirópteros, passou a figurar no cenário epidemiológico nacional como um grande desafio a ser trabalhado em busca de um controle sustentável. O morcego passou então a ser o principal transmissor da raiva ao homem, no Brasil. Casos humanos foram identificados em várias regiões, chamando a atenção os surtos registrados, nos anos de 2004 e 2005, em populações ribeirinhas, inclusive crianças, nos estados do Pará e do Maranhão. Após 14 anos, no estado do Pará, voltaram a ocorrer casos nas mesmas condições que os anteriores. Em paralelo houve registro também em áreas urbanas, devido a ataques diretos dos quirópteros ou por felinos às pessoas. Nesses, o diagnóstico laboratorial apontava para variantes de morcegos identificados nos casos.
Outro fator de relevada importância na raiva silvestre foi identificado no estado do Ceará, por trabalhos de vigilância e estudos antigênicos e moleculares, que possibilitaram a descoberta de uma distinta variante viral circulando em primatas não humanos calitriquídeos (saguis, micos), com casos humanos por transmissão dessas espécies relatados por Morais (2000) e Favoreto (2001). Posteriormente, também o estado do Piauí registrou eventos semelhantes em animais e humanos. No Ceará, houve casos em canídeos silvestres, como o Proxyum (guaxinim), inclusive com registro de um caso humano. Outras espécies de canídeos silvestres, como a raposa (Cerdocyun thous e Pseudolopex vetulus), são frequentemente identificadas com raiva, principalmente na região Nordeste do país.
Além do conhecimento sobre os fatores mencionados por Schneider e colaboradores (2009), como alterações climáticas e ambientais, historicamente a população considera que a raiva é apenas transmitida por cães, ou seja, outros mamíferos não são vistos como sendo de risco potencial. Poucos têm consciência que mamíferos silvestres, de maneira geral, albergam uma gama de agentes microbianos e vírus, entre outros, que se constituem em potenciais agentes infecciosos para os seres humanos.
Desde 1966, o Ministério da Agricultura, por meio da Divisão de Defesa Sanitária Animal, instituiu o Plano de Combate à Raiva dos Herbívoros, que atualmente se denomina Programa Nacional de Controle da Raiva dos Herbívoros (PNCRH), executado pelo Departamento de Saúde Animal (DSA), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Estima-se que a raiva em herbívoros na América Latina cause prejuízos anuais de centenas de milhões de dólares, provocados pela morte de milhares de cabeças, além dos gastos indiretos que podem ocorrer com a vacinação de milhões de bovinos e inúmeros tratamentos pós-exposição (sorovacinação) de pessoas que mantiveram contato com animais suspeitos.
O PNCRH estabelece suas ações visando ao efetivo controle da ocorrência da raiva nos herbívoros no Brasil e não à convivência com a doença. Esse objetivo é alcançado por meio da vacinação estratégica de espécies suscetíveis e do controle populacional de seu principal transmissor, o Desmodus rotundus, associados a outras medidas profiláticas e de vigilância.
Precisamos desenvolver ferramentas para determinar quais enfermidades e patógenos que se encontram sob risco de surgimento, de maneira a priorizar a pesquisa e sua evolução no contexto de saúde pública emergencial. Devem ser priorizadas as enfermidades para as quais não há ou são insuficientes as medidas preventivas e que oferecem maior potencial epidêmico.
A raiva não se encontra entre essas enfermidades de grande risco pandêmico, mas é evidente que deve ser foco de avaliação de risco e prevenção. Apresenta um elevado risco para a saúde pública, por isso, pesquisas e desenvolvimento são necessários, incluindo vigilância, monitoramento e formas de diagnóstico precoce. Esforços para entender e encontrar os gatilhos do desenvolvimento do quadro clínico e mitigar as causas de sua ocorrência devem ser encorajadas.
Atualmente, a legislação federal que aprova as normas técnicas para o controle da raiva nos herbívoros no Brasil é a Instrução Normativa nº 5 do Mapa, de 1º de março de 2002. Várias Unidades da Federação (UF) possuem legislação própria que detalha as ações específicas sobre o programa em nível estadual, em apoio às normas federais. Essas UF desenvolvem programas organizados, com ações definidas quanto ao controle do Desmodus rotundus, atividades educativas, diagnóstico laboratorial, estímulo à vacinação dos herbívoros domésticos, cadastramento de abrigos e vigilância epidemiológica.
É necessário que essas ações ordenadas sejam ampliadas a todos os estados brasileiros. O objetivo principal destas diretrizes apontadas pelo PNCRH são subsidiar os Serviços de Defesa Sanitária Animal no controle da raiva dos herbívoros, orientando a escolha da melhor estratégia a ser utilizada para cada situação encontrada. Tendo em vista a vigilância em ruminantes, desenvolvida no Brasil para todas as enfermidades neurossindrômicas, com ênfase para a vigilância da raiva e da encefalopatia espongiforme bovina (EEB), bem como da scrapie, o Art. 2º da IN nº5/2002 determinou a obrigatoriedade de o proprietário notificar de imediato o Serviço Veterinário Oficial a ocorrência ou suspeita de casos de raiva.
Gestão atual da raiva
Mesmo hoje, uma vez que os sintomas da raiva se desenvolvam nos seres humanos, existem poucas expectativas para o tratamento da doença. Trata-se de uma enfermidade evitável por vacinação. O gerenciamento atual para alguém exposto ao vírus da raiva é a profilaxia pós-exposição (PEP). Isso envolve a administração de imunoglobulina e vacina anti-raiva logo após a exposição ao vírus, seguida por uma série de aplicações desse imunobiológico durante dias.
Até o momento, a PEP tem uma taxa de sucesso de quase 100% quando administrada corretamente, logo após a exposição ao vírus. Como resultado, poucos casos de raiva ocorrem, hoje, quando há acesso a tratamento médico adequado. Dos casos anuais de raiva, 95% ocorrem na Ásia e na África, onde a atenção médica após a exposição ao vírus ainda permanece como uma lacuna na atenção ao paciente. Isso significa que é possível evitar a ocorrência de casos, desde que seja possível vacinar os indivíduos infectados a tempo.
De maneira geral, há condições mínimas necessárias para que agentes infecciosos surjam e determinem doenças. Apenas ambientes específicos, externos e/ou internos ao organismo, apresentam-se adequados à ocorrência de determinada doença. A domiciliação é um mecanismo de dispersão de populações envolvendo o ambiente artificial. Esse fenômeno indica o risco de uma zoonose silvestre vir a se instalar em ambiente doméstico.
Fatores antrópicos são fundamentais para que agentes etiopatológicos tenham sua distribuição ampliada, mesmo quando se fazem valer de hospedeiros intermediários.
Uma reorganização em um determinado espaço, seja por conta de qual atividade for, determinará alterações ecológicas em menor ou maior grau. Alterações ecológicas alteram a circulação do agente infeccioso. O estudo de viroses como a raiva, sua ocorrência, seus determinantes e processo de disseminação está incluído em epidemiologia. Sua análise deve ser realizada na perspectiva moderna de espaço virtual, e não territorial, e uma aplicabilidade de Saúde Única.
A dinâmica epidemiológica observada quanto à raiva ao longo do tempo provavelmente também está relacionada à percepção da doença no contexto das diferentes políticas de saúde nos diferentes períodos de tempo, o que pode ter influenciado a sensibilidade do sistema de saúde em detectar casos. Investigações quanto à sensibilidade do sistema de vigilância epidemiológica para prospecção, diagnóstico e manejo dos indivíduos (potencialmente) infectados são prioritárias.
Políticas e necessidades de pesquisa devem ser identificadas para melhorar o controle ou interromper a transmissão dos principais agentes de doenças infecciosas no Brasil (Barreto et al., 2011), inclusive a raiva.
Paralelamente, a tecnologia permitiu produzir evidências irrefutáveis da etiologia infecciosa das doenças endêmicas e epidêmicas.
O diagnóstico precoce da presença de vírus da raiva sendo produzido por células não vitais de um determinado mamífero pode ser considerado o ponto de partida para a prevenção da doença propriamente dita. Desde que se tem conhecimento dessa enfermidade sua causa é procurada. A detecção do vírus da raiva em órgãos não relacionados ao sistema nervoso central tem ocupado pesquisadores de todo o mundo.
Foram feitos estudos experimentais para verificar a possibilidade de uma condição de hospedeiro tipo reservatório no sentido pleno da palavra. Ou seja, células não essenciais produzindo vírus, sem afetar fundamentalmente o organismo infectado. Em teoria, isto é perfeitamente possível, inclusive, já foram produzidas vacinas que se constituíam de vírus da raiva modificados de tal maneira a só serem capturados por células musculares, de fácil renovação. Essas células produziam um vírus modificado que não era capturado nem produzido por células do sistema nervoso central. Dessa maneira, não havia acometimento do sistema nervoso central nem espaço para o desenvolvimento de um quadro clínico-neurológico.
Mendez-Ojeda e colaboradores, em 2018, consideraram que dados obtidos em estudos experimentais de agentes etiológicos em hospedeiros suscetíveis devem permitir uma visão melhor da compreensão da transmissão do patógeno e a sua perpetuação por meio de reservatórios na natureza. Ao avaliarem o título de anticorpos neutralizantes em morcegos hematófagos inoculados experimentalmente com vírus da raiva, os pesquisadores verificaram uma elevação progressiva ao longo do período de incubação nos animais infectados.
Assim, a presença de anticorpos neutralizantes não tem, necessariamente, correlação com imunidade protetora, conforme já observado em outros estudos envolvendo condições experimentais ou animais de vida livre.
Sabe-se desde a Antiguidade que basta evitar o contato com o animal infectado que não haverá o desenvolvimento da enfermidade. As glândulas salivares, desde sempre, são consideradas potenciais portais da eliminação de vírus, com sua transmissão pela saliva durante a mordida.
Uma hipótese sugere que o sistema imune inato de morcegos rapidamente controla a replicação viral para níveis muito baixos, limitando as consequências clínicas em morcegos. Mesmo assim, ainda há eliminação de vírus e subsequente transmissão para outras espécies. Isso representa uma possível explicação de não se detectar genoma ou vírus em amostras de saliva.
Considerações finais
A raiva é uma das mais antigas doenças conhecidas e temidas da humanidade, devido ao quadro clínico particularmente grave associado à doença.
A ferramenta base para manutenção da saúde e a prevenção de enfermidades é a profilaxia. E a prevenção é obtida, em muitas situações, por ações que evitam ou amenizam o efeito mórbido do agente causal original.
Faz-se prioritária a orientação de médicos-veterinários para a conscientização do público em geral para os aspectos de risco de transmissão de vírus da raiva por mamíferos não tradicionais, as formas de prevenção e ações pós-exposição ao vírus.
Considerando a amplitude do quadro epidemiológico, a prevenção e controle da raiva não deve apenas envolver as áreas de saúde, meio ambiente e agricultura, mas enfatizar o enfoque intersetorial com educação, habitação, infraestrutura e outros setores.
A conscientização e participação da comunidade na implementação das medidas de prevenção são fundamentais, reduzindo o risco de transmissão a indivíduos suscetíveis. A participação da comunidade esclarecida, juntamente com agentes em Saúde Única e nos NASF-AB, permite a prevenção da raiva quando há um adequado monitoramento da presença do vírus e dos riscos ambientais. Esses agentes desempenham um papel relevante na identificação e divulgação de fatores de risco, trabalhando na divulgação para comunidades locais, “pressionando-as” quanto à importância da prevenção.
Referências:
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